sábado, 8 de setembro de 2018

Uma partida.



É uma mentira. Essa mentira é para contar uma contradição. Pois veja. Ela foi embora.

Os anos nos fizeram estabelecer uma boa relação, minha esposa e eu, cúmplices do medo que nós temos do mundo. Ao que poderia chamar um terceiro de submissão, eu jamais daria esse nome, tudo que ela fazia por mim era por vontade própria, nunca a pedi nada, mesmo quando deixava ela de fazer algo habitual, nunca questionei ou confrontei por tal. - Vá lavar a louça Mariana. - Você não lavou as minhas roupas Mariana? - Tal nunca foi dito, mas ainda assim ela foi embora. Lembro que no começo, quando nos conhecemos na Igreja, gostei dela porque era a menos tímida entre as garotas. Falava as vezes em meios aos homens com naturalidade e geralmente chocava-lhes duplamente. Primeiro por sua ousadia de mulher, segundo pelo seu conteúdo que expressava, certo ou errado, uma opinião contraria a de todos. Meus amigos quando a conheci já estavam quase todos arranjados, era um ou outro que ainda restava sem par, e eu para não ficar para trás tratei logo de investir em quem me atraia.Ela era de beleza comum, assim como eu sou de beleza comum - espero que vocês entendam a grande diferença entre a beleza comum de um homem e de uma mulher - exceto por sua boca, que era isoladamente linda, mas que no conjunto da obra a dava um ar de exótica. Uma exótica comum, como todos exóticos comuns existentes.

No principio da partida foi estranho, achei empolgante, um tanto desafiador, ela começou a ter ideias, ideias que não eram nossas, eram só dela, mas ela me incluía em um gesto de afeto, penso que talvez quisesse ela que eu tivesse também aquelas ideias, seriam então duas ideias idênticas que se apoiariam. Me confessou com o café posto que estava com vontade de viajar, viajar para um lugar diferente dos lugares que viajavamos. Ela queria um lugar desconhecido, talvez até aleatório e eu me assustei discretamente. Para onde iriamos aleatoriamente, para onde iriamos que fosse diferente de onde estávamos? Perguntei a ela para onde e me disse então: não sei, é só vontade. Estranha vontade para nós, que juntos tínhamos medo, mas ela sozinha tinha vontades. Eu também tinha coisas que só pertenciam ao nós, aprendi com o tempo a me portar como homem perto dela, que eu é quem deveria conversar com os atendentes e pedir, era minha responsabilidade de escolher o lugar ao restaurante e entender da qualidade das coisas, e isso não pertencia ao eu isolado, dentro do nosso relacionamento eu era mais, não mais que ela, mais que eu mesmo.

Um dia vi ela se arrumando para jantar na casa de sua irmã, me falara no dia anterior, percebi algo diferente, suas vestes estavam coloridas e seu cabelo preso, que se não em nossa intimidade nunca a vi prender o cabelo, isso era a parte dela que pertencia ao nós, ser elegante, mulher de pompa, mesmo que ela por si só não se importasse com isso, então vi que o nós e ela começaram a se confundir, não digo se misturando mas se enfrentando e nisso ela ganhava. Foi difícil aceitar que ela poderia as vezes ter vontades que não pertencessem também a mim. Um dia no supermercado a vi carregar a maior parte das compras, me deixando apenas três ou quatro sacolas, dirigiu ela o carro para casa e adiantou-se em guardar a compra, coisa rotineira que fazíamos juntos, sem combinar, pensei a princípio que talvez estivesse mais disposta que o normal contudo devo confessar que pensei também que talvez ela tivesse alguma queixa a me fazer, por algo que cometido eu nem notará. Pausou silêncio sobre isso. Pensei nessa ocasião em beija-lá, contudo a ausência de harmonia explicita me acuou, aguardei a queixa, sempre direta e bem resolvida, nunca veio, nunca mais fui capaz de beija-la, a queixa calada calou também o afeto. Por episódio seguidos a partida se dava, confesso que cheguei a me desesperar secretamente, já vi isso acontecer, estava claro, as novelas e filmes sempre anunciaram, devia então surpreende-la com um ato que expusesse meu amor e compreensão sobre ela, devia reconhece-la e também suas intimidades para restabelecer infinitamente nosso relacionamento. Os filmes e novelas pareceram mentir, ou sobre a utilidade de seus atos programados capazes de estabelecer a infinitude ou sobre a facilidade e habilidade necessária para concretizá-los - seriam os atores bons em matéria de concretude? -. Me senti por vezes culpado, pensei que talvez se fizesse algo diferente ou algo a mais sustentaríamos nosso relacionamento que discreta e silenciosamente desmoronava - estranha matemática do diferente e do "a mais", parecem semelhantes quando se trata de relacionamento, acho que porque quando o diferente mata o comum já nem se considera a subtração do que no fundo não somava.-

Pois que tivemos uma de nossas brigas sérias, já tivéramos outras brigas sérias porém com acusações sem conteúdo, essa contudo estava diferente, não era por morarmos no bairro próximo a família dela ou por irmos muito mais em minha mãe do que a dela, não era sobre comprarmos dois ou um carro ou pela janela que facilitaria o cozinhar, ela me acusou de estar cansada, irritação acumulada que nos levou aquilo, sem precedentes, sem posteriores, o estado de cansaço se concretizava em abstração. Nessa ocasião e continuadamente depois dela já não pude ser o mesmo, pensei depois disso que tudo que eu fazia e era à cansava, que tudo que eu poderia fazer ou ser à cansaria, até esse "mesmo" que eu não era a poderia cansar, foi difícil pra mim por que não sabia como pagar adequadamente pelo pior crime que eu teria cometido em toda minha vida, cansar minha mulher, qual a sentença? Seria eu sentenciado a vê-la estar cansada ou ausentar-me para parar esse estado? Então punição e reparo? O que é esse estado? Eu cansava-a? Eu a obrigava a se cansar? Ela se cansava de mim? Eu sou algo de que se possa cansar? Eu sou o próprio cansaço? Meu deus! Sou sujeito, verbo, complemento, objeto ou predicativo? Do cansaço ou dela? E se foi dai por diante.

Acho que ela já sabia, inclusive sabia que eu sabia, que a alguns instantes nos quebraríamos, nosso casamento parecia um vaso a beira da mesa, onde quando caísse deixaria os estilhaços, a água limbosa e a rosas já passadas lançados no chão em uma mistura não homogênea. Tornamo-nos juntos mais atentos, de passos e atos mais sensíveis, nem um de nós queria ser o que derrubaria o vaso por descuido da mesa, curioso que até o que deveríamos evitar nesse grau de risco cumpríamos com melhor maestria, nada mais era necessário para deixar explicito, o não-dito já era suficiente para ambos sabermos, ao procura-lá, depois disso tudo com muito menos frequência, na cama ela já não se dava o direito de recusar, ou ao me pedir dinheiro para as compras eu lhe entregava dinheiro a mais para não correr o risco de ser insuficiente, o dinheiro e eu.

Me perguntava todos os dias o que faríamos com nossos humildes planos: os de reforma, os de filhos, os de velhice. Nunca mais tocamos neles, apesar de estarem lá, em algum lugar onde não poderíamos olhar os dois ao mesmo tempo, nossas conversas se bastavam ao presente ou passado, nosso futuro virou um segredo que escondíamos de nós mesmos, ou um do outro. Ela me disse então que iria começar a estudar, fazer um curso de secretária, até me perguntou o que eu achava, fiquei com receio de parecer contrario, no fundo eu gostaria de ter perguntar onde, ou se o curso tinha boas referências, ou se não teria um curso com um tema mais interessante, sei que ela sempre foi boa em matemática, mas não tive coragem, só consegui dizer que achava boa a ideia: se é o que você quer. Ela me informou que se começasse o jantar passaria a sair uma hora mais tarde.
Passou-se um tempo com o vaso a beira. Ela começou o curso. Eu continuava a me entristecer. Eu pensava, pensava e  pensava, pensava no que nos tinha levado aquilo, foram tantas coisas pensadas que eu já nem sabia separar o que de fato tinha acontecido do que imaginara que aconteceu, pensava ainda se havia algum modo de reflorescer, mas tudo que eu pensava sobre isso me levava a possibilidade de cansa-lá ainda mais ou que de vez ela me diria o que ainda não tinha dito, eu sozinho tinha medo por nós, acho que ela tinha medo por mim.

Não era justo que eu fosse tão intolerável, eu nunca fiz nada para torna-me isso. Talvez ela estivesse algo a mais além de cansada, será que ela estava também com ódio, de mim, de nós, eu pensava.
Vi tudo, do começo ao fim, e não entendia. Talvez fosse por isso, porque eu não entendia. Ela foi indo embora e percebendo eu corria, mas quanto mais eu corria, mais longe ela estava. Quando mais eu procurava busca-lá, mais eu à perdia, ou mais ela se perdia, ou mais eu me perdia. Veja, ela ia e me levava e ao mesmo tempo me deixava, eu já não era, ela também não, será que ela se deixará também? Talvez, por mais que eu seguisse aquela mulher que eu via já não fosse ela quem eu procurava, qual Mariana eu queria? E ia indo.

De fato se deu quando ela me disse que tinha uma entrevista de emprego: hoje a tarde. - Deveria sorrir? Pensei -. - Mas se sorrisse e demonstrasse empolgação exagerada e ela pensasse que eu a queria fora de uma forma negativa -. - Quando foi que ela tinha entregado currículo-. - E se eu fosse monossilábico e parecesse desinteressado-. - E se eu demonstrasse curiosidade e soasse invasivo-. Disse: que bom, está ansiosa? Ela apenas respondeu que não, e que talvez o jantar passasse a demorar um pouco mais, se eu preferia que ela deixasse semipronto para somente esquentar, pedi que não se preocupasse. E difícil saber o momento do fim.
O telefone tocou. Atendi. Era minha mãe. Não sabia o que dizer. Lembro que até se dar o silêncio para minha resposta demorou bastante e quando se deu perdurou o dobro. Pensei. Apenas disse que era melhor assim, que ela não se preocupasse: foi escolha minha. Precisava desligar, a sindica batia na porta e tinha ainda roupas a desencaixotar. Será que ela tinha conseguido o emprego?

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