domingo, 28 de outubro de 2018

Interjeição de uma galinha!



   Era um galinheiro e eu era uma galinha. Mas que vida...
   Todas vivíamos para morrer, só isso era certo, a quantidade de ovos que ponharíamos e chocaríamos para morrer é que não sabíamos, só que se chocassem de certo também morreriam.
   De tamanha certeza da morte o quando passou a ser secundário, pensávamos somente no quem e em quantas, as vezes pensávamos também no como, eu até cacarejava de medo, muito baixo para não me notarem.
   Fosse o homem, a mulher ou o jovem eramos ceifadas em quantidades diferentes, o jovem levava duas, sempre entre as mais gordas, lambia os beiços ao entrar, em seus olhos pudíamos ver passar os pratos com nossos corpos, assadas, fritas, ou ensopadas, a morte com ele vinha com expectativa de condecoração póstuma - eu temia até os temperos - a mulher levava sempre três, ela sabia pelo nosso cacarejar quem de nós era mais velha, nós galinhas não tínhamos memória boa, nos tratávamos como irmãs ainda que pudêssemos na verdade ser filhas umas das outras - ninguém sabia qual de nós viera primeiro - a mulher era rápida, sacava-nos e nos ensacava que mal podíamos lamentar, as vezes nem sabíamos quem é que tinha ido. Já o homem era amedrontador, ele entrava e pensava, e catava, uma só, depois especulávamos juntas qual o porquê dele escolher aquela. Viesse ele hoje amanha algum deles voltava, viesse o jovem ou a mulher só dali três dias, era um ciclo de morte, mas um ciclo indefinido de morte, um ciclo indefinido infinitivo de morte, porque no medo morríamos todas juntas, quando escolhida: a morte era pessoal.
   Um dia aconteceu algo estranho, mais estranho do que tudo isso. Uma galinha disse pra mim que era um homem, que estava convencida, eu ia ignora-la, pensar em um homem entre nós era absurdamente assustador, talvez eu fosse realmente medrosa demais, cacarejei.
   Como é que uma galinha podia estar convencida de ser um homem? E se ela fosse mesmo? Meu deus...
   Perguntei o que a fazia ter tanta certeza daquilo. 
   Ela disse: 
   - Não vê minhas penas, tão ralas, da pra se ver meu couro entre elas. 
   - Mas só isso? - eu disse.
   - Não vê meu bico que de tão pequeno é quase uma boca, tenho certeza que perceberam os homens que até batom poderia usar.
   - Bem, de fato seu bico é pequeno, mas só por isso?
   - Não me escutas? Ouça, meu cacarejar soa quase como uma voz, parece até um apelo humano, os homens vão notar, é muito diferente das outras galinhas, como podem não perceber?
   - Mas você não bota e choca? Se bota e choca é galinha!
   - Faz tempo que não boto, portanto não choco. Tanto tempo que quase nem sei se um dia já botei, não me lembro. De quase certeza digo nunca botei, nem mãe eu tenho.
   A esse ponto eu já pensava que de fato ela era uma galinha diferente, até entre as galinhas, que a ela olhavam estranho, estranheza que não se mantinha pela má memória, e as penas eram mesmo ralas, e o bico era mesmo curto, e o cacarejar era diferente. Será que aquela galinha poderia ser homem?
   - Olha, mas porque me conta isso? Não temes tu o homem, a mulher e o jovem como as outras galinhas? Eu temo.
   - Temer? O que há de temer? Sou um homem como todos, eles até me aliviam quando levam vocês galinhas, sobra espaço e milho, milho que não gosto, mas como para não ser um homem magro.
   - Mas porque diz isso? Não vê que todas aqui tememos? Tememos até por ti, mas agora que diz isso, não sei.
   - Por mim não precisa temer, sou homem, já disse. Te confesso porque preciso confessar a alguém, não aguento mas guardar isso comigo, e também porque preciso que outra pessoa também esteja convencida da minha certeza.
   - Olhe, eu ainda não estou em totalidade convencida, eu também adoraria ser homem, não pelas maldades que nos cometem, no fundo abomino-os, mas queria viver sem medo, podendo sacar e ensacar o que comer, que meus filhos não nascessem com a certeza de morrer.
   - Mas você não é, só de olhar da pra ver, eu é que sou.
   - Só isso não basta pra te fazer homem, sinto muito.
   - Disso tudo que eu te disse, se fosse tu homem já perceberia que sou também homem, mas te digo que o que me diferencia de vocês galinhas e me assemelha aos homens são as coisas que sinto e penso, só pensar que sou homem, sendo ou não, já me aproxima deles, desejar como faz tu de nada serve.
   - Então diga, como é que viestes parar aqui? Ciscando ou andando, ou ainda voando?
   - Não sei, não tenho boa memória, mas suspeito que algo terrível tenha me acontecido.
   - Sinto muito, mas ainda que desconfiada, não estou convencida de que seja tu um homem, precisa de mais.
   - Eu é quem sinto, deveria saber não te convenceria, galinhas não estão ai pra serem convencidas, e isso prova que sou um homem, me convenço, não bastasse, confesso a ti o maior de meus segredos: quero comer-nos, comer-nos todas, a ti e as outras, as que já vieram e as que ainda estão por vir. Querer comer-nos é o meu triunfo. Quando algum deles aqui entrar gritarei minha fome e eles de certo me serviram na cozinha.
   Eu temi, aquela galinha queria nos comer como um homem, sabia que ela sozinha não poderia fazer nada, mas se os homens a acolhessem ela o faria, talvez até me comesse de ódio contra minha negação a sua condição de homem, devia eu reconheçe-la para me preservar?
   - Isso que você disse, me convenceu. Só homens podem comer galinhas, se me dissese isso primeiro eu teria aceitado logo de cara, a fome é que torna o homem em homem.
   - Não queria dizer, pensei que pudessem me temer, algo que até devem, mas só depois que eu estiver na cozinha, a mesa. A maior prova é minha fome e ela me cega, cega a todos os homens, talvez por isso não tenham me reconhecido quando vem aqui. Estão sempre famintos.
   - Não sei mais o que te dizer, acho que nem preciso, vejo que tua certeza te basta, e a mim me basta meu medo, sou galinha por medo e tu és homem pela certeza de ser. Nem pena, nem bico importam.
   Nisso o homem entrou, sombrio como era, a galinha-homem arregalou os olhos de euforia, eu via um cacarejar crescendo dentro dela, era aquela sua oportunidade. Foram longos três pulos que deu, batendo suas assas de couro, no primeiro todas as galinhas já a olhavam, no segundo o homem percebeu, no terceiro agarrou-a. Suspensa se debatia - aquilo era alegria? -, botou então um ovo no ar, que caiu sobre minha cabeça, quebrou e respingou gema e clara em todas as outras. Eu via o homem apertando a mão, não queria que ela cacarejasse, eu tremia. Ele saiu com o braço esticado, foi sua passagem mais rápida pelo galinheiro, amanha alguém voltaria.
   Não sei se ela estava feliz, se tinha conseguido o que desejava, era estranho, um pouco eu torcia para que sim, um pouco temia haver mais um homem, só sei que o cheiro foi o mesmo de todos os jantares, chegava no galinheiro como que equiparável a um cheiro de velório humano. Penso sobre o que é que os homens comeram aquela noite, não sei dizer se era homem ou não, mas tenho certeza que não era galinha.
   Todos os dias até minha memória fraca prevalescer pensei naquilo, mas para além do pensamento agora eu temia mais, além dos homens de sempre que outros bichos naquele galinheiro eu deveria temer? Eu também não era mais galinha, depois daquilo fui para sempre suspeita.

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